O caso do espelho
Era um homem que não sabia
quase nada. Morava longe, numa casinha de sapé esquecida nos cafundós da mata.
Um dia, precisando ir à cidade, passou em frente a uma loja e viu um espelho pendurado do lado de fora. O homem abriu a boca. Apertou os olhos. Depois gritou, com o espelho nas mãos:
- Mas o que é que o retrato de meu pai está fazendo aqui?
- Isso é um espelho - explicou o dono da loja.
- Não sei se é espelho ou se não é, só sei que é o retrato do meu pai.
Os olhos do homem ficaram molhados.
- O senhor... conheceu meu pai? - perguntou ele ao comerciante.
O dono da loja sorriu. Explicou de novo. Aquilo era só um espelho comum, desses de vidro e moldura de madeira.
- É não! - respondeu o outro. - Isso é o retrato do meu pai. É ele, sim! Olha o rosto dele. Olha a testa. E o cabelo? E o nariz? E aquele sorriso meio sem jeito?
O homem quis saber o preço. O comerciante sacudiu os ombros e vendeu o espelho, baratinho
Naquele dia, o homem que não sabia quase nada entrou em casa todo contente. Guardou, cuidadoso, o espelho embrulhado na gaveta da penteadeira.
A mulher ficou só olhando.
No outro dia, esperou o marido sair para trabalhar e correu para o quarto. Abrindo a gaveta da penteadeira, desembrulhou o espelho, olhou e deu um passo atrás. Fez o sinal da cruz tapando a boca com as mãos. Em seguida, guardou o espelho na gaveta e saiu chorando.
- Ah, meu Deus! - gritava ela desnorteada. - É o retrato de outra mulher! Meu marido não gosta mais de mim! A outra é linda demais! Que olhos bonitos! Que cabeleira solta! Que pele macia! A diaba é mil vezes mais bonita e mais moça do que eu!
- Quando o homem voltou, no fim do dia, achou a casa toda desarrumada. A mulher, chorando sentada no chão, não tinha feito nem a comida.
- Que foi isso, mulher?
- Ah, seu traidor de uma figa! Quem é aquela jararaca lá no retrato?
- Que retrato? - perguntou o marido, surpreso.
- Aquele mesmo que você escondeu na gaveta da penteadeira!
O homem não estava entendendo nada.
- Mas aquilo é o retrato do meu pai! Indignada, a mulher colocou as mãos no peito:
- Cachorro sem-vergonha, miserável! Pensa que eu não sei a diferença entre um velho lazarento e uma jabiraca safada e horrorosa?
A discussão fervia feito água na chaleira.
- Velho lazarento coisa nenhuma! - gritou o homem, ofendido.
A mãe da moça morava perto, escutou a gritaria e veio ver o que estava acontecendo. Encontrou a filha chorando feito criança que se perdeu e não consegue mais voltar pra casa.
- Que é isso, menina?
- Aquele cafajeste arranjou outra!
- Ela ficou maluca - berrou o homem, de cara amarrada.
- Ontem eu vi ele escondendo um pacote na gaveta lá do quarto, mãe! Hoje, depois que ele saiu, fui ver o que era. Tá lá! É o retrato de outra mulher!
A boa senhora resolveu, ela mesma, verificar o tal retrato.
Entrando no quarto, abriu a gaveta, desembrulhou o pacote e espiou. Arregalou os olhos. Olhou de novo. Soltou uma sonora gargalhada.
- Só se for o retrato da bisavó dele! A tal fulana é a coisa mais enrugada, feia, velha, cacarenta, murcha, arruinada, desengonçada, capenga, careca, caduca, torta e desdentada que eu já vi até hoje!
E completou, feliz, abraçando a filha:
- Fica tranqüila. A bruaca do retrato já está com os dois pés na cova!
Um dia, precisando ir à cidade, passou em frente a uma loja e viu um espelho pendurado do lado de fora. O homem abriu a boca. Apertou os olhos. Depois gritou, com o espelho nas mãos:
- Mas o que é que o retrato de meu pai está fazendo aqui?
- Isso é um espelho - explicou o dono da loja.
- Não sei se é espelho ou se não é, só sei que é o retrato do meu pai.
Os olhos do homem ficaram molhados.
- O senhor... conheceu meu pai? - perguntou ele ao comerciante.
O dono da loja sorriu. Explicou de novo. Aquilo era só um espelho comum, desses de vidro e moldura de madeira.
- É não! - respondeu o outro. - Isso é o retrato do meu pai. É ele, sim! Olha o rosto dele. Olha a testa. E o cabelo? E o nariz? E aquele sorriso meio sem jeito?
O homem quis saber o preço. O comerciante sacudiu os ombros e vendeu o espelho, baratinho
Naquele dia, o homem que não sabia quase nada entrou em casa todo contente. Guardou, cuidadoso, o espelho embrulhado na gaveta da penteadeira.
A mulher ficou só olhando.
No outro dia, esperou o marido sair para trabalhar e correu para o quarto. Abrindo a gaveta da penteadeira, desembrulhou o espelho, olhou e deu um passo atrás. Fez o sinal da cruz tapando a boca com as mãos. Em seguida, guardou o espelho na gaveta e saiu chorando.
- Ah, meu Deus! - gritava ela desnorteada. - É o retrato de outra mulher! Meu marido não gosta mais de mim! A outra é linda demais! Que olhos bonitos! Que cabeleira solta! Que pele macia! A diaba é mil vezes mais bonita e mais moça do que eu!
- Quando o homem voltou, no fim do dia, achou a casa toda desarrumada. A mulher, chorando sentada no chão, não tinha feito nem a comida.
- Que foi isso, mulher?
- Ah, seu traidor de uma figa! Quem é aquela jararaca lá no retrato?
- Que retrato? - perguntou o marido, surpreso.
- Aquele mesmo que você escondeu na gaveta da penteadeira!
O homem não estava entendendo nada.
- Mas aquilo é o retrato do meu pai! Indignada, a mulher colocou as mãos no peito:
- Cachorro sem-vergonha, miserável! Pensa que eu não sei a diferença entre um velho lazarento e uma jabiraca safada e horrorosa?
A discussão fervia feito água na chaleira.
- Velho lazarento coisa nenhuma! - gritou o homem, ofendido.
A mãe da moça morava perto, escutou a gritaria e veio ver o que estava acontecendo. Encontrou a filha chorando feito criança que se perdeu e não consegue mais voltar pra casa.
- Que é isso, menina?
- Aquele cafajeste arranjou outra!
- Ela ficou maluca - berrou o homem, de cara amarrada.
- Ontem eu vi ele escondendo um pacote na gaveta lá do quarto, mãe! Hoje, depois que ele saiu, fui ver o que era. Tá lá! É o retrato de outra mulher!
A boa senhora resolveu, ela mesma, verificar o tal retrato.
Entrando no quarto, abriu a gaveta, desembrulhou o pacote e espiou. Arregalou os olhos. Olhou de novo. Soltou uma sonora gargalhada.
- Só se for o retrato da bisavó dele! A tal fulana é a coisa mais enrugada, feia, velha, cacarenta, murcha, arruinada, desengonçada, capenga, careca, caduca, torta e desdentada que eu já vi até hoje!
E completou, feliz, abraçando a filha:
- Fica tranqüila. A bruaca do retrato já está com os dois pés na cova!
Inferno nacional
A historinha abaixo transcrita surgiu no
folclore de Belo Horizonte e foi contada lá, numa versão política. Não é o
nosso caso. Vai contada aqui no seu mais puro estilo folclórico, sem maiores
rodeios.
Diz que uma vez um camarada que abotoou o
paletó. Em vida o falecido foi muito dado à falcatrua, chegou a ser candidato a
vereador pelo PTB, foi diretor de instituto de previdência, foi amigo do
Tenório, enfim... ao morrer nem conversou: foi direto ao Inferno. Em chegando
lá, pediu audiência a Satanás e perguntou:
- Qual é o lance aqui? Satanás explicou que
o inferno estava dividido em diversos departamentos, cada um administrado por
um país, mas o falecido não precisava ficar no departamento administrado pelo
seu país de origem. Podia ficar no departamento do país quer escolhesse. Ele
agradeceu muito e disse a Satanás que ia dar uma voltinha para escolher o seu
departamento.
Está claro que saiu do gabinete do Diabo e
foi logo para o departamento dos Estados Unidos, achando que lá devia ser mais
organizado o inferninho que lhe caberia para toda a eternidade. Entrou no
departamentodos Estados Unidos e perguntou como era o regime ali.
- Quinhentas chibatadas pela manhã, depois
passar duas horas num forno de duzentos graus. Na parte da tarde: ficar numa
geladeira de cem graus abaixo de zero até as três horas, e voltar ao forno de
duzentos graus.
O falecido ficou besta e tratou de cair
fora, em busca de um departamento menos rigoroso. Esteve no da Rússia, no do
Japão, no da França, mas era tudo a mesma coisa. Foi aí que lhe informaram que
tudo era igual: a divisão em departamento era apenas para facilitar o serviço
no Inferno, mas em todo lugar o regime era o mesmo: quinhentas chibatadas pela
manhã, forno de duzentos graus durante o dia e geladeira de cem graus abaixo de
zero, pela tarde.
O falecido já caminhada desconsolado por
uma rua infernal, quando viu um departamento escrito na porta: Brasil. E notou
que a fila à entrada era maior do que a dos outros departamentos. Pensou com
suas chaminhas: "Aqui tem peixe por debaixo do angu". Entrou na fila
e começou a chatear o camarada da frente, perguntando por que a fila era maior
e os enfileirados menos tristes. O camarada da frente fingia que não ouvia, mas
ele tanto insistiu que o outro, com medo de chamarem atenção, disse baixinho:
- Fica na moita, e não espalha não. O
forno daqui está quebrado e a geladeira anda meio enguiçada. Não dá mais de
trinta e cinco graus por dia.
- E as quinhentas chibatadas? - perguntou
o falecido.
- Ah... O sujeito desse serviço vem aqui
de manhã, assina o ponto e cai fora.
Sérgio
Porto - Stanislaw Ponte Preta
Os Dois Ratinhos (Ana Maria
Machado)
Era uma vez dois ratinhos. Bom, na verdade, eram dois camundongos, desses bem pequeninos que vivem nas casas velhas. E era mesmo onde eles moravam, numa casa de fazenda que já tinha sido de avós e bisavós de gente. Por isso, a madeira cedia num lugar, o reboco descascava em outro, um pedacinho de taipa caía mais adiante... Era uma maravilha de moradia para ratinhos e camundongos. Havia túneis pelas paredes, amplas avenidas no forro e vastos descampados no porão, além de ruas e vielas por todo o esqueleto da casa.
Pois uma dessas ruas é a que
nos interessa — e era a que mais interessava a eles. A que desembocava na
cozinha.
Uma noite, os dois camundongos
saíram para um passeio na cozinha. Era sempre uma festa.
Tinha lingüiça no fumeiro por
cima do fogão de lenha.
Tinha chouriço pendurado na
despensa.
Tinha queijo na prateleira.
Tinha um saco de fubá num
canto.
Tinha tanta coisa para comer
que nem dá para lembrar tudo.
Os dois ratinhos se
banquetearam, se empanturraram, até se fartarem. Depois, deu sede. Mas um deles
ainda tinha lugar na barriga para comer mais um bocadinho. Enquanto discutiam
se já deviam ir beber água ou não, viram uma tigela imensa, coberta por um pano
de prato de beiradas bordadas em ponto de cruz.
Foram olhar de perto. Era leite
que a cozinheira deixara para fazer coalhada. Uma tigela cheinha, quase
transbordando.
Pronto! Era a solução! Assim,
matavam a sede e o restinho de fome ou gulodice ao mesmo tempo.
Mas, quando se equilibraram na
borda da tigela para beber, um deles perdeu o equilíbrio e plaft! Caiu lá
dentro. Na queda, tentou se agarrar ao rabo do outro e plaft! O segundo ratinho
também caiu.
Começaram a tentar sair. Mas
era difícil, as bordas da tigela escorregavam. E eles estavam pesados, de
barriga cheia. Nadaram e se debateram, mas não dava para se apoiarem e sair.
Foram nadando, se debatendo e ficando cansados.
Um deles simplesmente desistiu.
O outro resolveu que não ia entregar os pontos. Nadava, nadava, mesmo que fosse
em círculos, só para não parar de lutar. Quando cansava muito, boiava ou se
agarrava às bordas e depois voltava a nadar. Passou assim a noite toda.
De manhã, quando a cozinheira
chegou à cozinha e levantou o pano de prato bordado que cobria a tigela de
coalhada, teve duas surpresas. Lá dentro tinha um camundongo morto. Mas a
surpresa maior não foi essa. Foi ver que a coalhada tinha virado manteiga, de
tanto ser batida. E, por cima, havia muito nítido um caminho feito de rastros —
as pegadas frescas de um ratinho que saíra caminhando sobre a manteiga e fora
embora.
Moral: se é fábula, tem que ter
moral, mas eu prefiro que você a descubra.
O Homem Nu
Fernando Sabino
Ao acordar, disse para a mulher:
— Escuta, minha
filha: hoje é dia de pagar a prestação da televisão, vem aí o sujeito com a
conta, na certa. Mas acontece que ontem eu não trouxe dinheiro da cidade,
estou a nenhum.
— Explique isso ao
homem — ponderou a mulher.
— Não gosto dessas
coisas. Dá um ar de vigarice, gosto de cumprir rigorosamente as minhas
obrigações. Escuta: quando ele vier a gente fica quieto aqui dentro, não faz
barulho, para ele pensar que não tem ninguém. Deixa ele bater até cansar
— amanhã eu pago.
Pouco depois, tendo
despido o pijama, dirigiu-se ao banheiro para tomar um banho, mas a mulher já
se trancara lá dentro. Enquanto esperava, resolveu fazer um café. Pôs a água a
ferver e abriu a porta de serviço para apanhar o pão. Como estivesse completamente
nu, olhou com cautela para um lado e para outro antes de arriscar-se a dar dois
passos até o embrulhinho deixado pelo padeiro sobre o mármore do parapeito.
Ainda era muito cedo, não poderia aparecer ninguém. Mal seus dedos, porém,
tocavam o pão, a porta atrás de si fechou-se com estrondo, impulsionada pelo
vento.
Aterrorizado,
precipitou-se até a campainha e, depois de tocá-la, ficou à espera, olhando
ansiosamente ao redor. Ouviu lá dentro o ruído da água do chuveiro
interromper-se de súbito, mas ninguém veio abrir. Na certa a mulher pensava que
já era o sujeito da televisão. Bateu com o nó dos dedos:
— Maria! Abre aí,
Maria. Sou eu — chamou, em voz baixa.
Quanto mais batia,
mais silêncio fazia lá dentro.
Enquanto isso, ouvia
lá embaixo a porta do elevador fechar-se, viu o ponteiro subir lentamente os
andares... Desta vez, era o homem da televisão!
Não era. Refugiado no
lanço da escada entre os andares, esperou que o elevador passasse, e voltou
para a porta de seu apartamento, sempre a segurar nas mãos nervosas o embrulho
de pão:
— Maria, por favor!
Sou eu!
Desta vez não teve
tempo de insistir: ouviu passos na escada, lentos, regulares, vindos lá de
baixo... Tomado de pânico, olhou ao redor, fazendo uma pirueta, e assim
despido, embrulho na mão, parecia executar um ballet grotesco e mal ensaiado.
Os passos na escada se aproximavam, e ele sem onde se esconder. Correu para o
elevador, apertou o botão. Foi o tempo de abrir a porta e entrar, e a empregada
passava, vagarosa, encetando a subida de mais um lanço de escada. Ele respirou
aliviado, enxugando o suor da testa com o embrulho do pão.
Mas eis que a porta
interna do elevador se fecha e ele começa a descer.
— Ah, isso é que
não! — fez o homem nu, sobressaltado.
E agora? Alguém lá
embaixo abriria a porta do elevador e daria com ele ali, em pêlo, podia mesmo
ser algum vizinho conhecido... Percebeu, desorientado, que estava sendo levado
cada vez para mais longe de seu apartamento, começava a viver um verdadeiro
pesadelo de Kafka, instaurava-se naquele momento o mais autêntico e desvairado
Regime do Terror!
— Isso é que não —
repetiu, furioso.
Agarrou-se à porta do
elevador e abriu-a com força entre os andares, obrigando-o a parar.
Respirou fundo, fechando os olhos, para ter a momentânea ilusão de que sonhava.
Depois experimentou apertar o botão do seu andar. Lá embaixo continuavam a
chamar o elevador. Antes de mais nada: "Emergência: parar". Muito
bem. E agora? Iria subir ou descer? Com cautela desligou a parada de
emergência, largou a porta, enquanto insistia em fazer o elevador subir. O
elevador subiu.
— Maria! Abre esta
porta! — gritava, desta vez esmurrando a porta, já sem nenhuma cautela. Ouviu
que outra porta se abria atrás de si.
Voltou-se, acuado,
apoiando o traseiro no batente e tentando inutilmente cobrir-se com o embrulho
de pão. Era a velha do apartamento vizinho:
— Bom dia, minha
senhora — disse ele, confuso. — Imagine que eu...
A velha, estarrecida,
atirou os braços para cima, soltou um grito:
— Valha-me Deus! O
padeiro está nu!
E correu ao telefone
para chamar a radiopatrulha:
— Tem um homem pelado
aqui na porta!
Outros vizinhos,
ouvindo a gritaria, vieram ver o que se passava:
— É um tarado!
— Olha, que horror!
— Não olha não! Já
pra dentro, minha filha!
Maria, a esposa do
infeliz, abriu finalmente a porta para ver o que era. Ele entrou como um
foguete e vestiu-se precipitadamente, sem nem se lembrar do banho. Poucos
minutos depois, restabelecida a calma lá fora, bateram na porta.
— Deve ser a polícia
— disse ele, ainda ofegante, indo abrir.
Não era: era o
cobrador da televisão.
Esta é uma das crônicas mais famosas do grande escritor mineiro Fernando Sabino. Extraída do livro de mesmo nome, Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1960, pág. 65.
Agradeço a Cristhiano Rocha Pereira pela lembrança.
Um
Apólogo
Machado de Assis
Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha:
— Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada,
para fingir que vale alguma cousa neste mundo?
— Deixe-me, senhora.
— Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com
um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça.
— Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é
agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o
ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros.
— Mas você é orgulhosa.
— Decerto que sou.
— Mas por quê?
— É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de
nossa ama, quem é que os cose, senão eu?
— Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora
que quem os cose sou eu e muito eu?
— Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao
outro, dou feição aos babados...
— Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante,
puxando por você, que vem atrás obedecendo ao que eu faço e mando...
— Também os batedores vão adiante do imperador.
— Você é imperador?
— Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno,
indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e
ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto...
Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não
sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista
ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano,
pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a
coser. Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a
melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana —
para dar a isto uma cor poética. E dizia a agulha:
— Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco?
Não repara que esta distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui
entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima...
A linha não respondia; ia andando. Buraco aberto pela agulha era
logo enchido por ela, silenciosa e ativa, como quem sabe o que faz, e não está
para ouvir palavras loucas. A agulha, vendo que ela não lhe dava resposta,
calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio na saleta de costura; não
se ouvia mais que o plic-plic-plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, a
costureira dobrou a costura, para o dia seguinte. Continuou ainda nessa e no
outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile.
Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a
ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto
necessário. E enquanto compunha o vestido da bela dama, e puxava de um lado ou
outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha
para mofar da agulha, perguntou-lhe:
— Ora, agora, diga-me, quem é que vai ao baile, no corpo da
baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com
ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira,
antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá.
Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça
grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha:
— Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é
que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu,
que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico.
Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse,
abanando a cabeça:
— Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!